17/12/2008

A luz me ofusca. Com a visão conturbada não sei onde estou e onde estava. Onde? Que caminhos percorri? Perante a um aglomerado de seres como eu, persisti esta caminhada amotinado. Tínhamos um alvo, todos.
Uns afoitos, determinados, destruíam-se e diante do estrondo provocavam temores, dores, contestações. As marcas perpassavam por eles e suas vidas corroíam o global e o pessoal.
O seguinte deles, imerso como todos nas águas límpidas que nos embalavam, permanecia tranqüilo, pois certo da sua chegada, desfrutava as beldades que o rodeava. Então, transmitia para todos a placidez permanente constituída da grandeza etérea.
O próximo sobreposto a mim me incomodava, envolvendo com o seu vôo. Assim um beija-flor rondava as flores tentando embriaga-las, a fim de conquistar o alvo. Eu, surpreso de suas mirabolantes piruetas, vislumbrando, vislumbrado, pasmo e envaidecido por estar um momento em seu olfato, compreendi a sua trama.
Destarte, percebi o quanto a magnitude e a penumbra que outros exalavam, conduzia-me ao êxtase, defrontando com um espaço nebuloso, uma brisa deslocada do infinito e declamada pela poesia da natureza.
Neste momento, fui lançado ao esmo, perfazendo em um recinto desconhecido contornos lineares, mas ilustrado por cenas de plenitudes, de prazer e de sedução.
E realmente não sei. A indagação me refuta e avante ao futuro sinto o toque, o acalento, o afago, a presença da vida me completa, mas onde encontra-la?
Ouço algo! Vejo algo! Um abismo... Imediatamente como se fosse um impulso perfaço a existência e descubro que somos um. Um ser que em instante foi dúbio, entretanto em segundos compreende que o resultado da vida está no elo de duas vidas.
Retorno ao colo materno. A sua presença me completa, o seu dia perdura os meus dias, a sua voz me acalma, o seu ser faz parte do meu ter. Com isso percebo o quanto a visão holística que deparei fez com que descobrisse o processo da existência humana é nascer para a vida.

Apenas palavras



O barulho do carro se afasta e Norma percebe que chegou o momento. O momento de encontrá-lo; o instante de se revelar por inteira, de entregar a devaneios e promover o seu contato diário de satisfação. Norma está exausta, mas esta satisfação não pudera negar que era única. Afastava do seu tumulto no trabalho, das suas amargas insatisfações e se entregava à palavra, ao encanto único e indecifrável das palavras. Elas soavam com uma melodia encantadora e este era o momento de Norma se metamorfosear.
Ele tinha este poder de abarcá-la por inteiro, de tocá-la, de promover um ouriço de contorções em seu cerne, que Norma não exitava a entregar por inteiro. Ele sabia do seu poder e tinha nas mangas as cartas certas para serem lançadas justamente no momento em que Norma mais precisava. Ela se sentia vazia, vazia do seu eu, vazia da sua capacidade de perceber que ele a dominava. Assim, ele conseguia programar situações que nem mesmo Norma poderia imaginar. A sua presença era a de um criminoso que arqueava a seus pés e simplesmente soprava nos ouvidos virginais desta que estava pura e prestes a desejá-lo.
Norma pensava “como estas palavras me encantavam, como a beldade do seu entrelaçar promove um prazer tão intenso e conseqüentemente, uma fruição que alvoroça o meu ser”.Mas isso estava sussurrando em seus ouvidos, acariciando cada minúsculo trajeto do seu corpo. Os seus lábios desejavam proferir as mesmas palavras, cobiçava compreender de que espaço profundo e enigmático estas palavras vieram. Mas Norma não possuía respostas e a cada tarde quente de um sol que dominava aquele azul as palavras dominavam o céu interior da essência de Norma.
As palavras foram imergindo e promovendo arrepios que manifestavam o antes adormecido. As palavras tentaculares dispunham da deliberação pertinente e assim tocaram-na e Norma não resistira, não conseguira suportar os seus anseios e perceber que naquele momento ela queria ser mulher. E envolta nos braços das palavras esvaecera de tantos quantos foram os seus desejos. O seu corpo queria ser corpo, a sua feminilidade se manifestava em freqüências graduais e as palavras... Estas se contraiam e embrenhando nas cavidades imaculadas despiam-na e Norma sentiu, sentiu o seu eu ser possuído, de uma forma morosa e divina. E diante a esta transitividade lingüística não se percebe mais o que encontrara em sua volta. As paredes do quarto, antes pálidas, insossas se transfiguraram. O silêncio foi quebrado com o cantar das mais belas melodias por um pássaro que estava no alto do coqueiro e o vento trouxera o encantamento que Norma presenciara nos embalos da linguagem.
Este momento foi impar, entretanto não havia mais espaço para a sua proliferação. A imanente agitação diária não possibilitava o encontro. O tempo destruía e construía novos aglomerados em sua vida; a distância que a afastava indignamente de arrebatar e lutar com presteza. Norma se via atada, não possuía mais as palavras, o seu encanto diário e assim percebeu:
“Nossa! Nunca imaginei como aquela rotina diária iria me fazer falta. Hoje a tarde faltava um pedaço, um galho, uma pétala, uma asa, como faltava e impossibilitada estava de prossegui, de completar e continuar a labuta. Privada estava de ser árvore, pois a minha base estava insustentável; impossibilitada estava de exalar a fragrância, pois como rosa o cravo que ao lado do jardim ficava não manifestou e as pétalas começaram a se desprender abafando o meu grito de liberdade. As minhas asas começaram a cair e o meu vôo antes forte, profundo, neste momento era apenas um vôo rasante arrancando as beldades da terra e imergindo em um canto solitário, sombrio e tumultuado do cerne da alma.”Os olhos se abrem e Norma mais do que nunca vai a busca dele. Chegara o momento de decidi a sua importância e contribuição na sua vida. Precisava ser o que pretendera ser. Precisava abrir as portas que antes se fecharam. Precisava retirar as poeiras do seu olhar e enxergar um amanhã. Pronto! Está definido. Norma abri a gaveta da escrivaninha do seu quarto, retira alguns papéis e percebe que ele continua lá intacto e repleto, em silêncio e desejando imediatamente falar, gritar e envolver Normas em suas páginas antes caladas.

16/12/2008


ENCANTAMENTO


O peso da noite era amargo. A sua escuridão negra acinzentada a pressionava naquela amplitude do horizonte. O seu olhar a encarava e as nuvens tenebrosas perscrutavam. As brumas embrulhavam a as estrelas, aprisionaram a lua e o tempo era áspero, ignóbil, indescritível. Ao seu redor algumas poucas e restritas árvores a circundavam naquele deserto de almas. Os seus pés acorrentados a terra pelas raízes subterrâneas se abatiam tão exasperados quanto o seu coração que ávido de esperança decidiu acordar. Acordar daquele pesadelo tumultuado de vozes, das sombras do âmago do ser enterrado, romper aquela mísera existência remexendo a terra e fitando diretamente aquela luz azulada. Era um caminho diante das trevas que a abatia e os seus braços libertos clamaram por isto. Diante da imensa fome de vida, ela arrancou o manto fúnebre daquela noite, amassou-o detalhadamente e queimou-o com o fogo das palavras na fogueira da linguagem.

A claridade arrebatara o seu corpo e ela com o ofuscar da luz se alevanta, tenta abrir os olhos para perceber o que a cercara. Um sol irradiante sorria o sorriso pueril, transbordando a pureza de uma estrela, a tranqüilidade do orvalho e a serenidade da brisa matinal. A sua frente uma árvore enorme, com uma copa vasta e uma sombra acalentadora; a grama que crescia a sua volta, transmitia as beldades esverdeadas confrontando com o céu azul e límpido. Diante dos seus olhos um vale completara a paisagem; o reflexo solar abrandara as suas tonalidades e as suas vozes ressurgiam dos animais em um só coro o concerto primaveril. E em uma delas, uma voz se sobressai e penetra nos ouvidos vaginais daquela que realmente almejava ouvir. Os seus olhos silenciaram, os seus ouvidos começaram observar atentamente o que se passara. No entanto as suas pernas arteiras e faceiras se colocaram em disparada. Com seu vestido branco embalando juntamente com o capim elevado os caminhos iam se abrindo e adentrando o silêncio sonoro da floresta tumultuada com o grito de uma cascata que de longe se anunciava. As árvores iam ficando para trás, os pássaros anunciavam a sua chegada, os papagaios em alvoroço proclamavam em uma só língua todos os falares florestais. Só se ouvia o levantar das pernas que aos poucos se cessaram diante da grandiosidade divina.

Uma cascata enorme soltava seus fios capilares no leito do rio, um lençol de plantas ornava o ambiente, os insetos alimentavam de vida, compondo assim mais um ciclo de existência. Alguns pássaros pulavam de galho em galho encantados com aquela que visitava o seu espaço e ela, ela parou, espalhou se toda e sentiu a terra; os seus pés cavaram com os dedos a terra úmida, próxima as águas, os seus braços se abriram diante da magnitude natural e a vida renascera.

Com seu corpo entregue aos encantos da floresta, a menina mal percebia que passos aproximavam. Na sua inocência não a permitira perceber o outro que por muitos instantes a observava. Ele veio com a tranqüilidade similar dos deuses e foi se aproximando. Na verdade não foi ouvido, mas sentido. Nem os anjos ousariam justificar tal fenômeno, mas ela o sentira: em cada poro de seu corpo arrepiado, dos seus pés descalços até suas mãos límpidas, foi um alvoroço. O seu coração ressurgia.

Ele sentou ao seu lado, tocou as suas mãos camufladas a terra, contornou cada dedo, cada espaço indefinido. Os seus olhos não precisavam se abrir, via sem se olhar e suas mãos dialogavam o encanto das palavras silenciadas. Ele tocou seus braços, acariciou sua face morna de desejos purpúreos, contornou seus lábios frescos e úmidos e cobriu seus cabelos entrelaçando-os nos seus dedos. Eles se olhavam, o corpo dele arqueou até sua face menina, e respiraram o hálito menta que a tanto desejavam. Naquele momento não se ouvia um sussurro, apenas os corpos falavam a mesma língua. Enfim, abraçaram, sentiram o calor que os dominaram e permaneceram ali pelo tempo suficiente de acender a chama do olhar. Os corpos se levantaram, apoiaram em uma árvore propícia a situação e eles se olharam. A intensidade do olhar guiou as suas mãos desejadas do toque. E os seus dedos desceram pelo seu colo, puxou a alcinha do vestido e viu o seu ombro nu contornado pelo pincel das suas mãos. Mãos ávidas ao toque deslizaram um pouco mais e sentiram algo tão sublime, que apontava os caminhos. Mas ele detinha o segredo deste mistério, sabia o que fazia e ela apenas com olhar sussurrava de delírio: um toque sem toque, uma carícia indescritível, seguida dos lábios quentes de desejos do seu amado.

Ai minha menina! Quanto o tempo nos maltratou, embora tenha também preparado para aquele momento único. As suas pernas esfregavam uma na outra e o beijo a deixou mais eufórica, um beijo que dizia tantas metáforas, poetizava quantos encantos. Ela não estava mais suportando e resolveu dizer-lhe a senha... Ele não tinha mais os seus controles... contornou seu corpo, desceu as suas mãos pelo vestido branco e foi levantando-o, com um carinho indescritível. Percebera então o que nunca imaginara: aquela peça fininha que cobria o proibido, desejado. Ao observar, permaneceu envaidecido com tamanha preciosidade, embora houvesse ainda o que provocaria todos os pecados. Mas ela sabia o que ele queria, desceu com suas mãos a fina e pequenina peça, e ele? Ele aproximou lentamente e a beijou, e foi bem devagarzinho beijando cada espaço. Mas ela não tinha nada o que dizer, não sabia mais onde pegar e o pediu com a voz trêmula e ávida de desejo. “Deita-me!”.

Ele a obedeceu e percebeu o seu querer intenso, mas precisava comprovar. Com seus dedos desejosos, tocou-a. Ela estava imersa em seu próprio ser, molhada com a profundidade das águas do rio que ao lado assistira aquela cena. Era o sinal que ele precisava, o esperado por todos os seus encantos. Ela só fez o que ele queria e sussurrou baixinho em seu ouvido tocando a sua face, esfregando os pés uns aos outros e ela sentiu lentamente preencher-se com um domínio dos anjos. O beijo agora não era só beijo, era também abraço, amasso, mordida, os seus ouvidos ouviam palavras indizíveis, a sua respiração alongara os batimentos. E ela? Ela tomou o domínio da situação, empurrou-o para o chão e invertera as posições. Ai sim seria fada, estrela, mulher, menina e ele a controlava. No vai e vem daquele embalo eles só sabiam de que eram apenas um. Um no outro com todo os prazeres da carne, desejos da alma e pecados da existência. Ela foi, foi e sua voz não agüentou o silêncio, seu corpo pedia a sua fome e a intensidade do momento adjetivou com os seus gemidos misturados ao dele e de mãos dadas, olhos nos olhos, batimentos acelerados, eles descobriram que o tempo é um presente, um acalento, uma calmaria, uma maresia.

Os corpos se jogaram e ela percebeu que o ônibus chegara em uma rodoviária e que tudo que restou foram apenas palavras eufóricas para serem repassadas.



Nossa! Nunca imaginei como aquela rotina diária iria me fazer falta. Hoje a tarde faltava um pedaço, um galho, uma pétala, uma asa, como faltava... e impossibilitada estava de prosseguir, de completar e continuar a labuta;

Privada estava de ser árvore, pois a minha base estava insustentável; impossibilitada estava de exalar a fragrância, pois como rosa o cravo que ao lado do jardim ficava não manifestou e as pétalas começaram a se desprender abafando o meu grito de liberdade;

As minhas asas começaram a cair e o meu vôo antes forte, profundo, neste momento era apenas um vôo rasante arrancando as beldades da terra e imergindo em um canto solitário, sombrio e tumultuado do cerne da alma.
Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços...
- São os teus braços dentro dos meus braços,
Via Láctea fechando o Infinito.
Florbela Espanca